terça-feira, 3 de novembro de 2009

Extremo neurótico

[...]Outro dia mesmo lá estava eu no cartório ouvindo a conversa alheia, coisa que gosto muito de fazer. Tenho dó na maioria das vezes; tanta burrice, tanta falta de noção das coisas – uma perda de tempo, pensaria você, leitor, mas isso não verdade, ouvir os outros é uma arte. O bom ouvidor é discreto como uma parede e interpreta tudo como um estrategista de guerra.

Aquele que sabe escutar e interpretar o papo dos outros, consegue ouvir qualquer coisa sem perder a postura. Por exemplo, foi depois de presenciar uma série de términos de relacionamento que eu pude terminar o meu numa boa e, acreditem, não tremi nem amoleci ao ouvir todos os tipos de blasfêmias e xingamentos. Ninguém merece passar por isso, muitos perdem o controle nessas horas, eu não. Fui íntegro, parecia que estava com a cabeça na Lua enquanto a louça lá de casa ia se espatifando no chão. Só acordei com os gritos da vizinha, que ameaçava chamar a polícia caso a louca da minha ex-mulher não parasse de espernear contra o fantasma do seu marido – ninguém acreditou que eu estava ali, eu não elevei o tom em nenhum momento, eu nem mesmo elevei minha carcaça do sofá. Pobre da minha ex-mulher, que teve que quebrar 70% dos vidros e porcelanas da casa para se acalmar.

Passado esse episódio, nunca mais me abalei por nada. Deixei de ter dó, de sentir raiva, nem alegria eu conseguia exalar. Talvez você considere essa indiferença uma característica essencial para o homem moderno, imerso num mundo sem compaixão, do qual ele deve ser frio para crescer.

Não é o meu caso: sou frio porque não consigo ser outra coisa. Não tenho mais aquele sal que deixava as pessoas intrigadas com minha personalidade. Minha expressão facial lembra um quadro de natureza morta, bem morta. Meus gestos são invisíveis. As pessoas me chamam pelo nome, demoro para responder e minha voz é sempre a mesma. O que posso fazer? Sou uma pessoa que, de tanto ouvir as outras, acabou perdendo a própria chama de vida.

Mas não me deixe muitos dias sem ouvir a trova dos populares. Aí sim enlouqueço! Começo a desenvolver trejeitos próprios, aos poucos perco minha típica inércia e crio emoções. Odeio isso, fico vermelho, pisco o olho esquerdo umas 5 vezes quando vejo alguma coisa que me irrita.

Preciso das pessoas, da massa que vem e vai sem me deixar sozinho por um segundo. Costumo andar com um gravador e durmo ao som das minhas fitinhas. Algumas não me deixam pregar os olhos de madrugada –o barulho das conversas se sobrepondo fazem a cortina das minhas noites perfeitas.

Ligo o som, fecho os olhos. Não preciso de mais nada.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Na rua passa um ônibus,
Pessoas e tempo
Não é só um, mas vários
Como demoram tanto
Vem e vão
Um
Esse
Outro
De novo
Mais um
E nada daquele

Expectativa num lado
N’outro o frio corrente
Para onde vai essa gente
Triste do ponto lotado?

Ali vem ele!
O livro pregou
Seus olhos
Veio em vão

E o tempo passa

Chegou mais um agora!
Embarque pronto
Um conhecido me aparece
E o quanto assunto
Quanta demora
A porta fechou, partiu

Maldito! Poderia ter vindo antes
Ou nunca ter surgido na vida
Não conseguiu explicar
Agora não camarada
Fica pra depois
Essa conversa fiada
a saudade

E torna a esperar

Pra casa
Quase todos servem
Mas tem que ser nesse
Voltou depois de tanto tempo
De novo
O fim da agonia

Passou batido
e lotado
Ele não agüenta
Se joga no primeiro que surgiu depois
Era Lapa-Conceição e morreu na horinha

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Enquanto isso num pettit comité...





- Opa

- Oi

- Te conheço, não

- É mesmo, eai?

- Tranqüilo, eai?

- Beleza..

- Com quem você veio?

- Com eles, e você?

- Tô com o pessoal.

- Tá certo. E aí, vai pegar um drink?

- É. Tô nisso que eles chamam de fila, sabe como é que é...

- Em algumas horas um drink é necessário.

- É. Tem horas que os drinks se fazem necessários. A pista nem começou a pegar direito ainda...

[...]

- Foda cara. Tu tá em todas hein.

- Né... vejo você direto também.

- Estranho, nem lembro como te conheci

[.]

- Ah! Lembro sim. Pode crer...

- é

- Aquele lance da mina...

- é

- Lembro. Olha cara... Nem sabia que ela era sua, quer dizer, só soube depois. Não lembro

- não, mas sem essa. Não encanei

- Agora lembrei, foi aqui.

- olha, foi

- Mas eu jurava, não lembrava que era sua.

- Já era ex, há um tempo.

- Sei. E você...

- não

[..]

- é cara, foi mal. Imagino que deve ser meio bad esse tipo de coisa

- Não, Sussa. Só que sabe como é que é.

- Sei, foda. Mas sabe que não foi muito além daquilo não... enfim, não sei o que é ouvir isso...

- Não de boa. Eu também não levei assim tão longe

- foda

- foda

[...]

- Oi meninos!

- Uau! Oi... ér... tudo bem?
- Nossa, você... como vai?

- Tô ótima. Acabei de chegar.

- Eai, como vocês tão? Nunca imaginei encontrar vocês dois juntos

[.]

- (ha!) Engraçado...

- sempre os mesmos lugares
- sempre as mesmas pessoas

- É neh. Eai, o que vocês estão fazendo?

- eu vim pegar um drink

- eu também

- Tem horas que eles são necessários

- tem

- neh

- Bem gente, já volto, vou lah ver todo mundo.

[..]

- inesperado

- muito

[.]

- estranho. Ela...

- é

- pra você também? achei que...

- nada. Tem vezes que... nem sei

- Gente, então... Esse é o meu namorado

- opa!

- Eai?

- bom?

- Beleza?

- Nossa! Quanto tempo que eu não encontro vocês. Vocês estão bem?

- Eu tou ótimo.

- Eu também, numa boa.

- Que legal. Ah gente, tenho que ir, tão me chamando na pista. Mas logo mais eu volto ai para pegar um drink.

- ok
- tá

[.]

- Também vou nessa, prazer...

[...]

- eu não tava afim de...

- nem eu, se

- é. Se eles voltarem, melhor ir pra pista.

- tem horas que um drink...

- sempre. Tem horas, mas sempre tem a pista

- a pista não para


**


- desenho da Rivane Neuenschwander, o que nunca existiu jamais poderá ser explicado

vídeos publicitários que não querem ser publicitários

muito bons !

nada de cannes ou outros festivais, essas campanhas são lindas, inteligentes e questionam muito bem o papel da publicidade nos dias de hoje.

a saída é ir pro cinema? acho que não, mas dá pra ser cinematográfico sin perder la ternura:

1 - Stella Artois

http://www.youtube.com/watch?v=TK11TppfX5U

2 - Diesel

http://www.isbrave.com/

Deveria e poderia ter elaborado um post melhor e maior, tenho que pegar ritmo - to voltando, Brasil! (vai rolar update, óbvio)

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Time dos sonhos



Torcer para um time não é fácil. Você não sabe direito porque exatamente gosta tanto de um único time; como pode ele ser tão precioso quanto um vaso de cristal, tão importante quanto um filho e tão apaixonante como uma canção do Roberto?

Não sei responder a essas perguntas. Mas, como todo desbocado, sei fazer polêmica ou aumentar as intrigas que pintam por ai. E falando em pintar, o meu amigo Fë começou uma mania que promete: inventarmos o nosso time dos sonhos composto somente com personagens da mais tenra ficção.



Nisso vale tudo: livros, filmes, gibis, músicas, fanzines, catálogos do pedágio e outras mil fontes de personagens que tanto agradaram e agradam nossa cabeça desocupada.

E já pondo o meu time em prática, mirando o título da primeira divisão alagoana eu vos lanço o já eterno Clube Umbigulus de Futebol Entrópico, cujo apelido carinhoso é Cú de Fé, e a mascote uma Foca.

Assim como o seu criador, o Cú de Fé prima pelo bom gosto no vestir. Suas cores, rosa flamingo e azul grená dão o tom meninë babagento que ultrapassa os protocolos da virilidade futebolística e chegam para impor um estilo mais galante de pisar em campo e quicar a pelota.

Além do mais, o Umbigulus conta com a moderna estrutura do La Babadeira. Moderna construção inspirada na sede do Boca Juniors, o estádio construído é um remendo de uma cocheira. Sua fundação se dá sobre um cemitério indígena abandonado, daí talvez se explique o fato do Cu de Fé nunca ter perdido uma partida sequer na segunda divisão alagoana.



Agora, vamos ao time titular de 89, um plantel formado por craques dignos de placa. Uma tropa que marcou com boladas e jatos de sangue a história do futebol mundial. Inesquecível, meus amigos, essa formação do Clube Umbigulus de Futebol Entrópico:


Goleiro: A começar pelo arqueiro, temos uma imagem do requinte e da crueldade do Umbigulus. Balrog, o monstro do boxe, catava todas as bolas com suas mãos. Seus únicos problemas eram não cobrar tiro de meta e nem dar chutão, mas, naquela época, o futebol moleque permitia a bola atrasada da zaga para o goleiro. O que surpreendia era a sua saída de gol nos cruzamentos – sempre em mirabolantes voadoras manuais, não tinha um que ficava de pé.


Lateral esquerdo: Já dizia doutor Sócrates, “Lateral que é lateral tem que saber atacar e defender”. Essa foi a máxima usada pela comissão técnica do Cú de Fé para contratar um menino negro, que depois ficou branco e depois ficou louco. Michael Jackson traçava o lado esquerdo do campo e ainda cruzava bolas inacreditáveis com seus chutes afetadamente rápidos. Na hora de voltar, ia de Moonwalk, para marcar cara a cara o jogador adversário. Um verdadeiro ídolo pop das pelotas.

Zagueiro de formação: Depois de várias tentativas para achar alguém para a posição, o time encontrou um pequeno garoto mexicano rosado que gostava muito de comer. Apesar da obesidade e da voz fina, pensaram “Por que não?”. E não é que Majin Boo deu certo no futebol. O raciocínio foi simples, se ele come tudo, que ele coma os adversários, o juiz, a torcida. Enfim, um verdadeiro fanfarrão da linha de trás.

Beque central: Quem não se lembra de um bom beque? Cada um ao seu tempo, um beque descente é digno de suspiros de saudades. No Umbigulus, o Capitão Presença era aquele típico beque idolatrado pela torcida. Seu porte lascivo e seu temperamento manso faziam dele um homem de pouca ação e muitas palavras. A crítica reclamava da sua lentidão e do seu modo prolixo de tirar a bola da fogueira e ainda querer ensinar ao adversário como plantar unzinho no quintal. Onde tinha fumaça, tinha o Presença.

Lateral direito: Capitão do time tem que saber falar. Capitão do time tem que saber defender os companheiros. Um dos ídolos da torcida, o Homem Pássaro, formou-se em direito. Foi para Harvard, depois Oxford. Cansou da vida corporativa e resolveu se dedicar a sua paixão, o futebol. Sua expertise no tribunal o ajuda na cartolagem dentro das quatro linhas. Seu desempenho é excelente, a não ser em jogos nublados.

Quinto zagueiro ou volante de origem: Se tinha um jogador que ajudou a definir melhor a posição de quinto zagueiro, este foi o Dark Knight, do filme Monty Phyton e o Cálice Sagrado. Quanta disposição para a briga! Quanta garra! Que raça! Passar por ele era uma tarefa para poucos. Mesmo contundido, o Dark Knight se orgulha de nunca ter sido substituído em nenhuma partida sequer.


Ponta esquerda: Nunca tinha visto um jogador tão polido desde Alex Kid. Este menino sabia o que queria e era um verdadeiro diplomata dos gramados. Faturava todas as divididas num simples jogo de jô-ken-pô. Nenhum adversário resistia ao charme deste pequeno, cujo mullets tão característicos eram o terror da mulherada.

Meia: O homem da criação. A bola passa por ele em qualquer jogada. Para essa tão nobre posição, só homem como Presto para desempenhar a função do mago da equipe. Conhecido pelas constantes crises de perda de foco, o homem do chapéu verde era responsável pelas jogadas mais dramáticas nos momentos de tensão, como tirar um elefante no meio de um contra-ataque, ou convocar um enxame de abelhas em pleno escanteio ofensivo.

Ala direita: Esse é fera. O verdadeiro bad boy do time, Mr. Blonde nunca deixou os gramados sem um cartão – normalmente vermelho, normalmente após decepar a orelha do adversário, normalmente após um bom tiroteio. Escalado após o brilhante papel em Cães de Aluguel, ele é conhecido por fumar em pleno jogo e apagar o cigarro na testa do árbitro.

Centroavante: Costumam achar que todo centroavante é um cara ligeiro, sagaz. Mas no Umbigulus, o Marshmallow Man, do filme Ghost busters, era o melhor na posição. Demoníaco, com cara de ingênuo, alucinado, lento como um caramujo e letal como uma ogiva atômica era o terror da grande área.

Atacante ou cabeça de área: O homem-gol não poderia ser outro que não agregasse tantas qualidades, que em pleno 1989, seriam verdadeiras tendências para o futuro. Baixinho como o Romário, matador como o Edmundo, gordo como Ronaldo e banheirista como Diego Tardelli. O Homem Mola era um atacante a frente do seu tempo. Bola na área? É com ele. Marcação da zaga rival? Ele estica a perna e pega. Esse não perdia uma e ainda fazia coreografias à la Beach Boys a cada tento.

Técnico ou professor ou mestre: A inteligência do time ficava a cargo de Zordon, o homem espelho. Com sua voz de veludo ele orientava essa salada de criaturas e liderou o time pelas mais duras pelejas. Históricas vitórias, partidas delirantes que paravam todo o Alagoas e Zordon ficava ali, tranqüilo, numa boa. Quando a energia acabava, o mestre perdia o sinal e as orientações ficavam a cargo de Gorpo, seu primeiro imediato.

Ufa!

Um time desses só poderia entrar para os anais do futebol clássico, bem jogado. De forma que não vemos mais isso hoje.

É nessas que eu deixo você leitor. Afinal, como diria o patriarca do time, Aloísio, “Se subrar uma bulinha, tem que meter pra gol.”.



Gostou? Continue esse MeMe.

Um abraço d’O Santo Líquido.

- imagem da capa de Claudio Tozzi, pop à brasileira.

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Daqui não passa

Estava ali um menino, na sala, sozinho. Ele tinha a missão mais chula da piada barata: apagar a luz. E lá estava ele por ser o último a sair.

Esse menino olhou bem para todos os bancos desarrumados. Todos canetados, com desenhos mal-feitos e anotações. Uns assentos estavam carcomidos, outros mais ajeitadinhos – eram diferentes e definitivamente não eram iguais aqueles da sala do outro lado do corredor. Não se pareciam com nenhum outro conjunto de bancos de sala de todo o prédio.

Até hoje esse menino não sabe explicar o que o fez ficar naquela sala vazia por tanto tempo. Se foi a lousa rabiscada, o lixo espalhado no chão ou as pecunímias que, por ventura, um ou outro aluno deixou por ali. O silencio iluminado por aquelas luzes brancas e secas dava um tom de apreensão – era preciso fazer alguma coisa.

O menino não pensou duas vezes e se pôs a sentar em cada uma das cadeiras. Sentava e lá ficava tentando se aconchegar mexendo os ombros, a bunda e a coluna. Sentava porque queria ver o que estava desenhado na prancheta da bancada, tentou entender um a um, suas formas e suas razões. Sentia que todos aqueles rabiscos o comoviam.

Alguns desses desenhos o fizeram rir, outros tantos o pregaram na cadeira por razões desconhecidas, mas encantadoras. O tempo foi passando e o menino não mais lembrava quem estava sentado em cada cadeira na hora da aula, ou a ordem, ou ao menos se essas cadeiras tinham sido manchadas nessa ou naquela aula.

Viu então que no dia seguinte a sala estaria arrumada novamente. A lousa seria apagada, as cadeiras ordenadas – talvez até limpas – e a luz seria acesa para mais uma temporada de estudos. Viu que era tão pequeno quanto as pontas de caneta e os papeis jogados pelo chão. Viu que toda aquela atmosfera, por mais insignificante que fosse, nunca mais seria a mesma.

Daí começou a lembrar de todos os alunos novamente. Não como pessoas físicas de cara e bocas. Mas sim como sensações, vozes, risadas, olhares e toques. Esqueceu-se dos nomes para ficar apenas com o sopro de cada um que estava ali. O esforço foi tanto que viu a sala novamente em aula, viu as cadeiras ruindo para ajeitarem aqueles alunos inquietos e teimosos. O vai e vem da conversa e até os desenhos continuaram. A lousa pipocava em riscos e rabiscos. Estava tudo ali, vivo, dentro daquela sala vazia.

Levantou-se, apagou a luz e não quis saber do dia seguinte.

domingo, 26 de outubro de 2008

Segundo turno*




O casal

Nesse segundo turno eles completaram 3 meses juntos. Conheceram-se através de um amigo, na rebordose das férias. Na praia, Ilha Bela. Logo na primeira noite beijaram-se. Duas semanas depois estavam namorando. Foi realmente rápido. Eles não ligam, e se dão bem.

O casal guardou para este último fim de semana de Outubro a volta à Ilha Bela mesmo. E as eleições? Não importa. Ilha Bela é mais importante; eles não estavam retomando o namoro, estavam fugindo. Seus sonhos valem mais que a tragédia eleitoral. Ela Topou o convite na hora.

No primeiro turno saíram para comemorar 2 meses. Cinema seguido de um japa. Tudo as mil maravilhas. Ele não lembra em quem votou para deputado e senador. Presidente: nulo – está revoltado com o lodo político e, na verdade, não deu a mínima para as campanhas, só votou nulo porque seu pai o fez.

Ela avisou os pais: “Vou pra Ilha. Não vou votar.”, eles hesitaram, mas não ofereceram resistência. Porque, antes de tudo, não acreditam no Segundo Turno, são chatos e conhecem bem o interminável domingo de eleições. Preferem esconder da filha o único domingo onde não há alegria. As pessoas inesperadamente ficam sem fé. Anacrônicas. O domingo é verdadeiramente humilhante. Os pais dela não dão futuro para o namoro, mas iriam juntos com o casal se fossem convidados.

A estrada na sexta estava vazia. O fim de semana prometia Sol. “Vou transferir meu título para a praia.”, quebrava o gelo. Tudo estava perfeito. As mazelas da nação são menores que a necessidade de ouvir a voz do outro. Os escândalos, as falcatruas, as campanhas eleitorais, a banalização do voto; nada disso importava para eles. A paixão e a conveniência da praia - suas lembranças e seu papel na historia do romance - valem mais que tentar salvar o país.

No quarto do hotel havia uma chama. Uma chama de amor e esperança que brilhava aparte das trevas que o país passava. Ele e ela podem ser os mais lúcidos da população. Os mais negligentes talvéz. Ou apenas contentes. Foi o melhor domingo de suas vidas.


O Azarado

Ele nunca teve sorte. Não ganhava nada. Nem bingo de acampamento. Nunca achou nada nas raspadinhas. Nunca encontrou um palito de sorvete premiado. No amigo secreto, aquele colega que esquecia do presente sempre era o que tinha tirado o seu nome.

Para essas eleições, não deu outra: mesário. Mal basta tirar o título e a carta do governo solicitando a sua apresentação para o treinamento dos mesários aparece debaixo do capacho. Parece até de propósito. Ele fez 18 anos e só não pegou exercito porque seu pé era chato e tinha escoliose. Sorte? Azar dele.

Como mesário teve de esquecer a saída com os amigos no sábado. Duas vezes. Segundo turno. Tudo de novo: as mesmas pessoas, o mesmo papo (“Titulo na mão. Documento. É pra deixar o celular desligado, ok?”), a mesma coreografia, a mesma paciência e a mesma mixaria – 12 reais – para o almoço. Mais um domingo que se vai. Azar? Azar dele, “Não há nada pior que ser mesário.”, pensava.

Era inevitável lembrar de alguns rostos. Quando a mesma senhora lhe perguntou quem eram os candidatos – pela segunda vez – ele se segurou para não chorar. Ele deu muita risada daqueles que vieram de pijama. Dos que confirmavam o voto e se arrependiam na hora, pareciam todos com Homer Simpson quando soltava o seu famoso: “Duh!”. Um ou outro candidato a deputado votava na sua seção. Pareceram estar mais desanimados que no primeiro turno, sem broches, adesivos e a comissão de familiares e amigos. Devem ter perdido. “Azar deles.”.

Ele não acredita muito no Brasil. Está acostumado a ver os outros darem mais sorte do que ele, mas sabe que o país precisa de seriedade, não de sorte. Não acha um azar a falta de candidatos, acha uma irresponsabilidade. O povo não é azarado, é falso. Tão falso quanto seus políticos. Comparou o colégio eleitoral a um matadouro. Os bois supostamente sabem que tem poucos minutos de vida. Supostamente devem imaginar que mais dia, menos dia, o matadouro vai chegar. Ficam supostamente normais na fila. Mas se olhar com atenção a essa fila aos olhares supostamente levianos dos bois, o que se vê é a forma mais pura da covardia. Azar deles.


O Homem da praça

Quem é ele? Ninguém exatamente. O homem da praça não é ninguém. Só está lá. Na praça. Ela é a sua ligação com o mundo terreno. Sua verdadeira pátria.

O homem da praça vive na praça desde que a praça foi construída. Dá bom dia a todos. Conhece as crianças que brincam nela e as babás fumantes e fofoqueiras pelo nome. Mas ninguém repara em sua existência. Ele tem seu banco. É dele. Nenhuma outra pessoa se atreveu jamais a roubar-lhe sua propriedade. Em baixo: quinquilharias e um espaço para dormir em caso de chuva. A cima: seu cobertor, garrafas e outros objetos que, para qualquer outro homem, que não o da praça, são lixo.

Estranhou num domingo haver mais vira-latas que gente na praça. Resolveu investigar e passou o dia caminhando pelos arredores. O homem da praça abandonou seu posto de guarda e resolveu ir atrás de seu rebanho.

Passou por alguns colégios eleitorais. Não era notado. Ouvia as pessoas conversando sobre tudo, menos sobre política. Eles disfarçavam. De vez em quando soltavam: “Vamos ver no que vai dar.”, “Dessa vez eu acho que a coisa vai mudar.”. Que coisa? O que eles esperam? O homem da praça achou estar na porta de uma igreja, numa vigília por alguém muito doente. Todos que entravam para rezar vinham apressados e sem muita alegria e saiam frios e dispersos como se o doente não tivesse salvação.

Os restaurantes estavam mais vazios. Tudo estava devagar. Transito só nas portas dos colégios. Flanelinhas faturando alto. Pela primeira vez achou que estava fora de alguma coisa. Voltou à praça. “O que está acontecendo?”, perguntou ao homem da guarita. “Eleições? Ainda bem que eu não tenho que votar.”. O homem da guarita não perguntou, mas tinha certeza que se o homem da praça tivesse algum documento, não seria um título de eleitor.


O Esquecido

“Caramba, a cidade ta vazia! Que horas são?”. As oito horas da manhã. Pós after hour a cidade parecia não ter acordado. A Paulista estava às moscas. Por segundos, achou estar no filme ‘Extermínio’ e concluiu que ainda estava um pouco bêbado. Foi pra casa. Dormiu.

Acordou, era quatro da tarde. Estava de ressaca. Olhou na janela e a cidade ainda não tinha acordado para o domingo. Estranhou e perguntou ao pai. “Eleições! Hoje? Puta merda!”. Jogou-se no armário. Colocou o primeiro par de roupas que encontrou na sua frente. Em dez minutos estava dentro do carro. Deveria votar no Itaim, onde morou até os 17. Porém, havia mudado para Perdizes, fazia já três anos. Pelo menos a cidade estava tão morta quanto no período da manhã.

Quatro e meia. Chega ao colégio eleitoral. Ainda descabelado e lutando contra seu rosto para arrancar-lhe as últimas remelas e aparentar uma cara de quem acordou as nove da manhã tomou café, almoçou com a família e estava tranquilamente exercendo seu dever como cidadão durante um domingo de segundo turno. Esse olhar durou pouco. Ao passar uma garota atraente seus olhos correram-lhe o rosto. Dirigiram-se dos seios às coxas, como de praxe. Um detalhe nela o chamou realmente a atenção. Ele era pequeno, notável e intransferível. “O título! Esqueci o título.”

Ele ficou imóvel. Seu olhar aparentemente despretensioso se perdeu. Ele se sentiu desconectado ao lugar que estava. Sem o título tudo estaria perdido. Não iria votar. Todo o seu esforço para chegar a tempo seria em vão. Ele tinha boas intenções. Estudou os candidatos. Prestou atenção nas campanhas e tentou alertar os mais dispersos a não votarem em candidatos engraçadinhos, famosos, bonitos, ridículos. Todos sem conteúdo. Para ele, apenas alguns – poucos mesmo – mereciam estar na câmara. Não que gostasse de política. Mas acha isso um ato de amor próprio ao seu país.

Saiu correndo no meio de todos. Voltou pra casa em poucos minutos, furou todos os faróis necessários, cortou outros carros e estacionou na entrada da garagem do seu prédio. No seu quarto não achava o título de jeito nenhum. Revirou tudo. Já eram cinco.

Ficou ainda mais desconectado e não sabia o que fazer. O interfone tocou. Seu carro estava impedindo que os moradores entrassem no prédio. A buzina do vizinho mal humorado lhe trouxe de volta a realidade. No carro ele procura um cigarro. Está trêmulo. O que irá acontecer com o seu futuro? Será preso? Deverá pagar alguma multa? Será mesário? Não poderá tirar passaporte? Não poderá concorrer para nenhum cargo público? A policia irá investigar sua casa? O que acontece quando deixamos de ser cidadãos? Afinal, o que é exercer a cidadania? É um domingo chato, uma lei seca, um voto obrigatório, um segundo turno?

Dentro do porta-luvas, junto ao plástico do maço, estavam seu título, sua carteira de habilitação e alguns trocados.

Como foi o seu domingo?

Escrito em 2006.

- Colagem de Robert Rauschenberg, ídolo pop.
 
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